quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Texto da semana...A Voz que Ouço quando Leio.

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Quando leio, há uma voz que lê dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas não acredito que seja o meu olhar que lê. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lê. Quando é séria, ouço-a falar-me de assuntos sérios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes, grita-me. Essa voz não é a minha voz. Não é a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, não me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas não é minha. Não é a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas é exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, não acredito que alguém possa ter uma voz que lê igual à minha, por isso é minha mas não é minha. Mas, claro, não posso ter a certeza absoluta. Não só porque uma voz é indescritível, mas também porque nunca ninguém me tentou descrever a voz que ouve quando lê e porque eu nunca falei com ninguém da voz que ouço quando leio.....
Talvez já tenhas percebido que eu não sou eu. Eu sou a própria voz que ouves quando lês. Hoje, pela primeira vez, quero falar directamente contigo. Quero que existo nestas palavras. Através delas, quero apenas dizer-te que existo. Estou aqui. As palavras que te digo desde que aprendeste a ler, a ouvir-me, são o meu corpo. Eu sou todas essas palavras. Sou as palavras que deixei dentro de ti e que sabes de cor. Sou as palavras que esqueceste. Durante este tempo, disfarcei-me de muitas vozes, de muitos rostos. Sou todos eles, contigo, em ti.

José Luís Peixoto, in 'Abraço'

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