terça-feira, 30 de novembro de 2021

Texto da semana...O Progresso Aumenta a Vida e a Morte..

 



Não desconheço que a velhice constitui, em grande parte, um preconceito aritmético, e que o nosso maior erro consiste em contar os anos que vivemos. Com efeito, tudo nos leva a supor que a Natureza dotou o homem (não falo já nas longevidades da Bíblia) de vida média mais longa do que aquela que as estatísticas demográficas acusam, e que, se morremos antes do termo normal da existência, é porque sucumbimos, não a «morte natural» (a «morte fisiológica», de Metchnickoff), mas a «morte violenta», que é a morte por acção destrutiva dos germes patogénicos. Como quer que seja, porém, parece-me incontestável que o homem envelhece antes do tempo e morre, em geral, quando ainda não chegou a meio do caminho da vida.

Será o engenho humano capaz de opôr uma barreira à marcha inexorável da decrepitude? Talvez. O nosso organismo é uma máquina; gasta-se, como todas as máquinas; e, por milagre da Natureza, ainda é aquela que, funcionando permanentemente, consegue durar mais tempo. Contentemo-nos com a ideia de que o homem de hoje vive mais do que vivia na Antiguidade clássica e na época medieval, mercê do progresso das técnicas, do conforto moderno da existência, da observação dos preceitos que a higiene, a ortobiose e a própria gerontologia (que quer ser uma ciência) prudentemente lhe aconselham. Vive, e viverá - bem entendido, se o deixarem. No regime, em que nos encontramos, de sucessivas guerras totais, se é certo que aumentam, em progressão aritmética, os recursos da ciência para prolongar a vida, - cresce, em progrssão geométrica, o esforço da humanidade para apressar a morte.

Júlio Dantas, in 'Páginas de Memórias'

CONCURSO DE LEITURA EXPRESSIVA - 19ª EDIÇÃO

 Parabéns a todos os participantes e aos merecidos vencedores!



terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sugestão de cinema...‘O Ano da Morte de Ricardo Reis de João Botelho - trailer


 ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’ passa-se em Lisboa, em 1936, quando o médico Ricardo Reis regressa a Portugal depois de se ‘auto-exilar’ no Brasil mais de uma década. Entrelaçando a ficção com a história, José Saramago concebeu um encontro particular, o do defunto Fernando Pessoa, com este heterónimo. 1936 é o ano de todos os perigos, do fascismo de Mussolini, do Nazismo de Hitler, da terrível guerra civil espanhola e do Estado Novo de Salazar.  Pessoa e Reis são dois lúcidos observadores da agonia de um tempo, tão similar ao que vivemos, onde ascendem os populismos e os totalitarismos. Nessa relação intrometem-se duas mulheres, Marcenda (Victoria Guerra) e Lídia (Catarina Wallenstein), as paixões platónicas, carnais e impossíveis de Ricardo Reis.




Texto da semana. José Saramago os cem anos do seu nascimento..A Regra Fundamental de Vida e Que Humanidade é Esta?...

 



Quando nós dizemos o bem, ou o mal... há uma série de pequenos satélites desses grandes planetas, e que são a pequena bondade, a pequena maldade, a pequena inveja, a pequena dedicação... No fundo é disso que se faz a vida das pessoas, ou seja, de fraquezas, de debilidades... Por outro lado, para as pessoas para quem isto tem alguma importância, é importante ter como regra fundamental de vida não fazer mal a outrem. A partir do momento em que tenhamos a preocupação de respeitar esta simples regra de convivência humana, não vale a pena perdermo-nos em grandes filosofias sobre o bem e sobre o mal. «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti» parece um ponto de vista egoísta, mas é o único do género por onde se chega não ao egoísmo mas à relação humana.

José Saramago, in "Revista Diário da Madeira, Junho 1994"



Se o homem não for capaz de organizar a economia mundial de forma a satisfazer as necessidades de uma humanidade que está a morrer de fome e de tudo, que humanidade é esta? Nós, que enchemos a boca com a palavra humanidade, acho que ainda não chegámos a isso, não somos seres humanos. Talvez cheguemos um dia a sê-lo, mas não somos, falta-nos mesmo muito. Temos aí o espectáculo do mundo e é uma coisa arrepiante. Vivemos ao lado de tudo o que é negativo como se não tivesse qualquer importância, a banalização do horror, a banalização da violência, da morte, sobretudo se for a morte dos outros, claro. Tanto nos faz que esteja a morrer gente em Sarajevo, e também não devemos falar desta cidade, porque o mundo é um imenso Sarajevo. E enquanto a consciência das pessoas não despertar isto continuará igual. Porque muito do que se faz, faz-se para nos manter a todos na abulia, na carência de vontade, para diminuir a nossa capacidade de intervenção cívica.

José Saramago, in 'Canarias7 (1994)'

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

CELEBRANDO O CENTENÁRIO DE JOSÉ SARAMAGO

 


José Saramago nasceu em Azinhaga, uma pequena povoação do Ribatejo em 16 de novembro de 1922. Filho de José de Sousa e Maria da Piedade, José de Sousa teria sido também o seu nome, se o funcionário do Registo Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de seu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres).

   Em 1924, a família mudou-se para Lisboa.  Embora as condições em que viviam tivessem melhorado um pouco com a mudança, nunca viriam a conhecer verdadeiro desafogo económico. Só aos 13 ou 14 anos passou a viver numa casa (pequeníssima) só para a família: até aí sempre tinham habitado em partes de casa, com outras famílias. Durante todo este tempo, e até à maioridade, foram muitos, e frequentemente prolongados, os períodos em que viveu na aldeia com os seus avós maternos, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha.


Avós de José Saramago

    Foi bom aluno na escola primária. Transitou depois para o liceu, onde teve notas excelentes. Frequentou apenas dois anos pois, por falta de meios, os pais não poderiam continuar a mantê-lo no liceu. A única alternativa seria entrar para uma escola de ensino profissional, e assim foi: durante cinco anos aprendeu o ofício de serralheiro mecânico. O plano de estudos da escola, embora obviamente orientado para formações profissionais técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura. Como não tinha livros em casa, foram os livros escolares de Português que lhe abriram as portas para a fruição literária. Terminado o curso, trabalhou durante cerca de dois anos como serralheiro mecânico. Também por essa altura tinha começado a frequentar, nos períodos noturnos de funcionamento, uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí que o seu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou.

      Casou em 1944 com Ilda Reis e passou a trabalhar como empregado administrativo. Em 1947, ano do nascimento da única filha, Violante, publicou o primeiro livro, um romance que intitulou A Viúva, mas que por conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado. Escreveu ainda outro romance, Clarabóia e principiou um outro, que não passou das primeiras páginas. Entretanto abandonou o projeto de escrita, tendo ficado ausente do mundo literário português durante dezanove anos.

Com Ilda Reis e a filha, Violante

    Por motivos políticos ficou desempregado em 1949, mas, graças à boa vontade de um antigo professor, encontrou ocupação na empresa metalúrgica de que ele era administrador. No final dos anos 50, passou a trabalhar numa editora, Estúdios Cor, como responsável pela produção, regressando, embora não como autor, ao mundo das letras. Essa nova atividade permitiu-lhe conhecer e criar relações de amizade com alguns dos mais importantes escritores portugueses de então. Para melhorar o orçamento familiar, mas também por gosto, começou a dedicar uma parte do tempo livre a trabalhos de tradução e à de crítico literário.

   Em 1966, publica Os Poemas Possíveis, uma coletânea poética que marcou o seu regresso à literatura. A esse livro seguiu-se, em 1970, outra coletânea de poemas, Provavelmente Alegria, e em 1971 e 1973 respetivamente, sob os títulos Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante, duas recolhas de crónicas publicadas na imprensa, que a crítica tem considerado essenciais à completa compreensão do seu trabalho posterior.

    Deixou a editora no final de 1971 e  durante os dois anos seguintes, trabalhou no vespertino Diário de Lisboa como coordenador de um suplemento cultural e como editorialista. Publicados em 1974 sob o título As Opiniões que o DL teve, estes textos  representam uma “leitura” bastante precisa dos últimos tempos da ditadura que viria a ser derrubada em abril daquele ano. Em abril de 1975 passou a exercer as funções de diretor-adjunto do matutino Diário de Notícias, cargo que desempenhou até novembro desse ano e de que foi demitido na sequência das mudanças ocasionadas pelo golpe político-militar de 25 daquele mês. Dois livros assinalam esta época: O Ano de 1993, um poema longo publicado em 1975, que alguns críticos consideram já anunciador das obras de ficção que dois anos depois se iniciariam com o romance Manual de Pintura e Caligrafia, e, sob o título Os Apontamentos, os artigos de teor político que publicou no jornal de que havia sido diretor.

    No princípio de 1976 instalou-se por algumas semanas em Lavre, uma povoação rural no Alentejo. Foi esse período de estudo, observação e registo de informações que veio a dar origem, em 1980, ao romance Levantado do Chão, em que nasce o modo de narrar que caracteriza a sua ficção novelesca. Entretanto, em 1978, havia publicado uma coletânea de contos, Objecto Quase, em 1979 a peça de teatro A Noite, a que se seguiu, poucos meses antes da publicação de Levantado do Chão, nova obra teatral, Que Farei com este Livro?.

  Com exceção de uma outra peça de teatro, intitulada A Segunda Vida de Francisco de Assis e publicada em 1987, a década de 80 foi inteiramente dedicada ao romance: Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989.

  Em 1986 conheceu a jornalista espanhola Pilar del Río com quem casou em 1988. Por questões políticas, em fevereiro de 1993 mudou-se  para a ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias. No princípio desse ano publicou a peça In Nomine Dei, ainda escrita em Lisboa e iniciou a escrita de um diário, Cadernos de Lanzarote. Em 1995, ano em que lhe foi atribuído o Prémio Camões, publicou o romance Ensaio sobre a Cegueira e, em 1997, Todos os Nomes e  O Conto da Ilha Desconhecida. Em 1998  recebe  o Prémio Nobel de Literatura.




    Desde 1998, publicou Folhas Políticas (1976-1998) (1999), A Caverna (2000), A Maior Flor do Mundo (2001), O Homem Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez (2004), Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005), As Intermitências da Morte (2005) e As Pequenas Memórias (2006) e em 2008,  A Viagem do Elefante  e ainda Caim e O Caderno II, publicados em 2009.

  Em 2007 foi criada uma Fundação com o seu nome, a qual assume, entre os seus objetivos principais, a defesa e a divulgação da literatura contemporânea e a defesa e a exigência de cumprimento da Carta dos Direitos Humanos. Em Julho de 2008 foi assinado um protocolo de cedência da Casa dos Bicos para sede da Fundação José Saramago.



  Postumamente, foram publicados Claraboia (concluído em 1953 e publicado em 2011) e Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas (2014), romance incompleto que José Saramago estava a escrever em 2010, ano do seu falecimento.


CELEBRANDO JOSÉ SARAMAGO ... COM UM FILME ANIMADO

 


Visualiza o filme do Livro que estudas nas aulas ...


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

S. MARTINHO CELEBRADO EM PROVÉRBIOS REGISTADO

 

Na aula de Português, os alunos da turma 5.º1 foram desafiados a realizar alguns trabalhos relacionados com os provérbios de S. Martinho.

Os alunos fizeram pesquisas individuais e em grupo, inspiraram-se, pediram ajuda aos familiares e os trabalhos surgiram cada qual com a sua apresentação original.

Os melhores trabalhos foram expostos na Biblioteca Escolar

Parabéns aos alunos e à professora Fátima Maia por manter viva esta tradição popular!


Vê agora os trabalhos!

   


MÊS DA BIBLIOTECA ESCOLAR COM ATIVIDADES DE ESPANTAR

                    

         O mês de outubro é considerado o Mês Internacional da Biblioteca Escolar, este ano sob o tema: “Contos de fadas e contos tradicionais de todo o mundo”.

Logo no primeiro dia do mês, todo o Agrupamento aderiu à iniciativa “A Escola a Ler – 5 minutos de Leitura” em que se leram textos informativos, científicos, literários e de educação para os valores. Ao longo do mês, a BE apresentou sugestões de contos e lendas do mundo que os utentes puderam requisitar e explorar. Foi ainda possível alimentar os quiosques de leitura de Outiz, Cavalões e Gondifelos com novos livros, pois os rigores das chuvas tinham danificado alguns exemplares.

De 18 a 22 de outubro, a Biblioteca ficou ainda mais animada com uma feirinha do livro, que disponibilizou obras de contos de fadas, contos tradicionais de todo o mundo e outras obras literárias que encantaram pequenos e graúdos.

         Nos dias 19 e 21 de outubro, todos os alunos do 1.º Ciclo, do 2.º Ciclo e três turmas de 7.º ano foram ao cinema, à Casa das Artes, visualizar os filmes “O Mundo Secreto de Arrietty”, de Hiromasa Yonebayashi, e “Surdina”, de Rodrigo Areias, tendo a oportunidade de contactar com um programador de cinema, um realizador e um ator, que os ajudaram a “ler” a realidade cinematográfica.

         Nos dias 26, 27 e 29 de outubro, os alunos do ensino Pré-Escolar, do 1.º Ciclo e do 5.º ano tiveram o ensejo de lhes ser apresentado um livro novo: “Viagem de Encantar para o Mundo Salvar”, de Júlio Borges, "A Lágrima", de Guerra Junqueiro e "D. Gualdim Pais, o Cruzado de Portugal", de Secundino Cunha, por uma contadora de Histórias fantástica, a atriz Inácia Cruz, que com imaginação, criatividade e interação com crianças e adultos tornaram as histórias dos livros melhor experienciadas. O ilustrador Sebastião Peixoto encontrou-se com os alunos do 5.º ano, falou-lhes da sua carreira académica, respondeu às questões dos presentes e presenteou-os com uma ilustração feita em tempo real, o que constituiu um momento de grande emoção para a plateia.

         Também ao longo do mês, os docentes de Português trouxeram os alunos à Biblioteca e permitiram-lhes participar em pequenas tertúlias literárias em que cada aluno se dedicava à leitura de um livro e partilhava com os colegas as suas impressões sobre a obra.

         Este mês internacional da Biblioteca Escolar foi, de facto, espetacular.

         Aprecia a reportagem que preparamos para ti. 



terça-feira, 9 de novembro de 2021

Sugestões de cinema -festa do cinema francês..



Texto da semana...Os idiotas confessos..

 






Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.

Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — «Uma santa! Uma santa!» Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia, etc., etc.

Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: – «Eu sou um quadrúpede!» Nenhuma objeção. E, então, insistia, heroico: – «Sou um quadrúpede de 28 patas!» Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.
E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos «melhores». Só os «melhores», repito, só os «melhores» ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.
Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos «melhores», só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os «melhores» podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — «Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido.» Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.
De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos «melhores». Para um «génio», 800 mil, um milhão, dois milhões, três milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em 15 minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão
.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam plateia para os «superiores». Hoje, não. Hoje, só há plateia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salário, atuação, influência, amantes, carros, jóias, etc., etc.
Quanto aos «melhores», ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a «invasão dos idiotas». E, de fato, eles explodem por toda parte: — são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão.

Nelson Rodrigues, in 'O Homem Fatal




terça-feira, 2 de novembro de 2021

Poema da semana.....Eu...

 

















Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa