Vai o ano correndo manso entre noites e dias, entre nuvens e sol, e quando mal nos precatamos, chegámos ao fim, e é natal. Para incréus empedernidos como eu sou, o caso não tem assim tanta importância: é mais uma das trezentas mil datas assinaladas de que se servem inteligentemente as religiões para aferventar crenças que no passar do tempo se tornariam letra morta e água chilra. Mas o natal (tal como as primeiras andorinhas, o carnaval, o começo das aulas, e outras efemérides do estilo) está sempre à coca da atenção ou da penúria do cronista, para que se repitam, Pela bilionésima vez na história da imprensa, as banalidades da ocasião: a paz na terra, os homens de boa vontade, a família, o bolo-rei, a mensagem evangélica, o ramo de azevinho, o Menino Jesus nas palhinhas, etc., etc. E o cronista, que no fundo é um Pobre diabo a quem às vezes falta o assunto, não resiste à conspiração sentimental da quadra, e bota a fala de circunstância...
Ora nós estamos no natal. Não me deixe o leitor cá fora,
porque o frio aperta e a maldade das gentes ainda é pior do que o frio, a chuva
gelada ou a lama. (A maldade das gentes, tome bem nota o leitor no seu caderno,
é pior do que a lama.) Fico pois aqui sentado, ao canto da mesa, e sou uma
testemunha sorridente das suas alegrias, se está nessa maré, ou tento
compreender as suas tristezas, se a roda corre contra si. E podemos recordar os
casos que lhe contei no desfiar dos dias, dir-lhe-ei o mais que então não pude
dizer, e, sobretudo, ficarei calado a ouvi-lo falar da sua própria vida, que,
como a Nau Catrineta, também tem muito que contar. Saberei que malhas e nós
tecem uma existência que não é a minha, esta que aqui ando a contar, e uma vez
mais descobrirei, sempre com o mesmo espanto, que todas as vidas são
extraordinárias, que todas são uma bela e terrível história. Ficaremos calados e
pensativos, a ouvir o relógio que vai matando os segundos à nascença para que
nós possamos dizer o tempo que vivemos.
Talvez daqui a um ano nos voltemos a encontrar neste mesmo sítio. Tornarei a
dizer: «Vai o ano correndo manso entre noites e dias, entre nuvens e sol, e
quando mal nos precatamos, chegámos ao fim, e é natal.» Para que tenha
justificação o meu título de hoje. Para que a crónica de natal seja natalmente
crónica. Mas não desta maneira.
José Saramago, in 'A Bagagem do Viajante'
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