Cada dia é sempre
diferente dos outros, mesmo quando se faz aquilo que já se fez. Porque nós
somos sempre diferentes todos os dias, estamos sempre a crescer e a saber cada
vez mais, mesmo quando percebemos que aquilo em que acreditávamos não era certo
e nos parece que voltámos atrás. Nunca voltamos atrás. Não se pode voltar
atrás, não se pode deixar de crescer sempre, não se pode não aprender. Somos
obrigados a isso todos os dias. Mesmo que, às vezes, esqueçamos muito daquilo
que aprendemos antes. Mas, ainda assim, quando percebemos que esquecemos,
lembramo-nos e, por isso, nunca é exactamente igual.
— Porquê, pai?
— Porque a memória
não deixa que seja igual, mesmo que seja uma memória muito vaga, mesmo que seja
só assim uma espécie de sensação muito vaga. É que a memória não é sempre
aquilo que gostaríamos que fosse. Grande parte dos nossos problemas estão na
memória volúvel que possuímos. Aquilo que é hoje uma verdade absoluta, amanhã
pode não ter nenhum valor. Porque nos esquecemos, filho. Esquecemos muito
daquilo que aprendemos. E cansamo-nos. E quando estamos cansados, deixamos de
aprender. Queremos não aprender por vontade. Essa é a nossa maneira de
resistir, mais ou menos, àquilo que nos custa entender. E aquilo que nos custa
entender pode ter muitas formas, pode chegar de muitos lugares.
— Porquê, pai?
— Porque nos parece
que é assim. Mas talvez não seja assim. Aquilo que nos custa entender é sempre
uma surpresa que nos contradiz. Então, procuramos convencer-nos das mais
diversas maneiras, encontramos as respostas mais elaboradas e incríveis para as
perguntas mais simples. E acreditamos mesmo nelas, queremos mesmo acreditar
nelas e somos capazes. Somos mesmo capazes. Não imaginas aquilo em que somos
capazes de acreditar.
— Porquê, pai?
— Porque temos de
sobreviver. Porque, à noite, a esta hora, temos de encontrar força para
conseguirmos dormir, descansar, e temos de acreditar que no dia seguinte
poderemos acordar na vida que quisemos, que desejámos. Temos de acreditar que
poderemos acordar na vida que conseguimos construir e que essa vida tem valor,
vale a pena. Muito mais difícil do que esse esforço é considerarmos que fomos
incapazes, que não conseguimos melhor, que a culpa foi nossa, toda e exclusiva.
José Luís Peixoto, in
'Abraço'
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