quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Momento de poesia...Mãezinha...








A terra de meu pai era pequena

e os transportes difíceis.

Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.

Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exacta,

dos boletins oficiais,

viviam lá na terra, a essa data,

3023 mulheres, das quais

45 por cento eram de tenra idade,

chamando tenra idade

à que vai do berço até à puberdade.

28 por cento das restantes

eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.

Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido

desde o dia da morte do extremoso marido;

outras, senhoras casadas, mães de filhos…

(De resto, as senhoras casadas,

pelas suas próprias condições,

não têm que ser consideradas

nestas considerações.)

Das outras, 10 por cento,

eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,

mas que por temperamento,

ou por outras razões mais ou menos secretas,

não se inclinavam para o casamento.

Além destas meninas

havia, salvo erro, 32,

que à meiga luz das horas vespertinas

se punham a bordar por detrás das cortinas

espreitando, de revés, quem passava nas ruas.

Dessas havia 9 que moravam

em prédios baixos como então havia,

um aqui, outro além, mas que todos ficavam

no troço habitual que o meu pai percorria,

tranquilamente no maior sossego,

às horas em que entrava e saía do emprego.

Dessas 9 excelentes raparigas

uma fugiu com o criado da lavoura;

5 morreram novas, de bexigas;

outra, que veio a ser grande senhora,

teve as suas fraquezas mas casou-se

e foi condessa por real mercê;

outra suicidou-se

não se sabe porquê.

A que sobeja

chama-se Rosinha.

Foi essa que o meu pai levou à igreja.

Foi a minha mãezinha.





António Gedeão.


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